segunda-feira, 27 de julho de 2009

Cenário Comum

Amanhecia mais um belo dia de céu azul cintilante, o sol nascente já brilhava com raios brancos, embora alguns ainda um pouco avermelhados e ouro levemente dourados como ouro claro. Nas árvores gotas de orvalho banhavam o solo fértil e sempre úmido daquela região, dessa vez mais ainda por causa da chuva do dia anterior.
Em meio a mata fechada ainda ouviam-se alguns sons de pássaros, embora distantes dali e quase silenciando. Para não dizer que a paisagem não tina muitas cores além das do raio do sol um belo arco-íris tinha se formado no horizonte, e estava tão nítido quanto aquelas pinturas expressionistas sobre as quais aprendemos na escola desde cedo.
Por esses aspectos podia-se dizer que era uma bela paisagem, mas haviam ainda outros pontos a serem analisados.
Uma névoa cinzenta com forte cheiro de pólvora misturado com outros cheiros mais desagradáveis e um forte cheiro de ferro ainda cobria toda a mata fechada. Mais abaixo dali uma enorme mancha vermelha escura e muito brilhante escorria pelo relevo pouco acidentado que se destacava diante da densa floresta que se complicava mais ao sul.
Fora os sons dos pássaros o que se ouvia eram os passos firmes sobre os galhos secos remanescentes do outono anterior. Pois o trabalho dos soldados ainda vivos era carregar os corpos mutilados dos companheiros de guerra, alguns estavam tão desfigurados que o levantamento dos nomes dos soldados mortos foi feito de acordo com os vivos, outros estavam tinham sido tão fuzilados que a carne se dilacerara e deixara vísceras e miolos espalhados por toda parte.
Os bravos guerreiros que mal sabiam pelo que lutavam foram enterrados numa enorme vala e logo após, uma missa foi rezada em memória desses homens desafortunados.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Rotina Urbana

Acordei, era cedo demais porque quem acorda tarde é vagabundo que não trabalha e nem estuda, e todos nós precisamos dar nossa contribuição diária para o sistema porque sem nós nada funciona. Me arrumei, porque você precisa estar bonito se quer agradar as pessoas, já que ninguém se importa com o caráter alheio, mas sim com a aparência. Tomei um café da manhã em pobre e com nenhuma fruta no cardápio, pois se o fizesse me atrasaria e capitalista que é capitalista não come frutas, já que elas não têm selo, etiqueta, estampa ou rótulo, e tudo que não tem essas coisas não é de marca e se não é de marca não é bom.
Depois de escovar os dentes e preparar todo o material não conseguia achar a chave para abrir o portão, já que ninguém se lembra onde colocou as coisas e nunca coloca no lugar certo, porque se pararmos pra fazer isso com certeza vamos nos atrasar mais ainda. Por fim, achei a chave, abri o portão e fui correndo ao ponto de ônibus ver se conseguia pegá-lo no horário, o que não aconteceu.
Fiquei meia hora esperando outro ônibus porque eles só passam de meia em meia hora mesmo, e quando veio estava lotado e tive que ficar espremido sendo encoxado e sentindo aquele odor pestilento de suor (isso porque era de manhã). Mas o ônibus não precisa ser vazio, confortável, rápido e eficiente, porque quem anda de ônibus são só os pobres, e pobre não é gente e nunca será, já que gente é só quem tem muito dinheiro, aparece na televisão com freqüência e tem milhares de seguidores no twitter.
Cheguei a escola e o professor reclamou do atraso, embora tenha me deixado entrar e sentar no canto. Mas eu não ligo, porque estudante é praga, aliás, não só estudante, adolescentes em geral são pragas, porque todos usam drogas, bebem, fazem sexo feito cães no cio e odeiam os pais.
Tive um dia horrível, porque não existem dias bons, ninguém é feliz, e como todo adolescente eu quero me matar sem razão só porque eu acredito que minha vida é uma bosta, sendo que fora do meu mundinho tem muita gente sofrendo feito almas condenadas ao inferno, esse que pode ser encontrado em qualquer lugar que tenhas pobres.
E depois desse dia horrível eu tive insônia e não dormi direito, porque segundo as estatísticas mais da metade dos brasileiros sofre de insônia, acho que é efeito colateral da pobreza mórbida.
No dia seguinte foi a mesma coisa, isso porque só contei a melhor parte...

sábado, 11 de julho de 2009

Cadáver

A Família sentou-se à mesa para fazer algo que não faziam há muito tempo, comerem juntos. Sim, com tanto trabalho ninguém mais na casa dava valor a uma refeição com todos unidos conversando sobre como foi o dia de cada um.
E justamente para essa ocasião rara e especial a mãe preparou algo delicioso, algo que deixou todos da casa com água na boca só de sentirem o cheiro.
Soou 8 horas da noite, todos já esperavam pelo tão aclamado prato e eis que ele chega à mesa esbanjando brilho.
Todos se apressam pra pegar um pedaço, então a mãe resolve cada um pra não gerar tumulto. O primeiro pedaço do cadáver vai para o filho pequeno, este que estava mais ansioso do que os outros, o segundo para o pai e o último para a menina.
Todos começam a degustar a carne gordurosa e farta do cadáver. o pequeno é o que mais faz sujeira, pega o pedaço enorme com as mãos e começa a dilacerar a carne pela pele, melando toda a boca e camisa, depois disso já com a gordura escorrendo entre os dedos começa a mastigar a carne lentamente saboreando cada pedaço e fazendo gestos típicos de crianças inquietas. O pai consegue ser mais brutal ainda, após comer toda a carne começa a roer os ossos e limpa os dentes com os dedos à medida que as farpas dos mesmos ossos se enroscam entre os maxilares. A menina com delicadeza usa os talheres, mas no final se rende a selvageria. E por fim, a mãe rasga com dificuldade o pedaço mais duro da carne.
Após o jantar todos descansam enquanto digerem o belo cadáver, o pai conta algumas estórias de infância para o filhinho, a menina e a mãe assistem à novela da Globo e por fim todos vão dormir após essa maravilhosa refeição. Um cadáver é capaz de fazer uma família feliz.

sábado, 4 de julho de 2009

O verdadeiro sentimento

Era uma menina adorável, pena que nascera com tamanha deficiência. Tinha os olhos esbugalhados e os membros atrofiados, além de um corpo muito fino e uma cabeça muito grande, a pele era branca e os cabelos crespos, os lábios secos e mesmo pequena já tinha muitas rugas e manchas roxas espalhadas por todo o corpo.
Aos sete anos começou a freqüentar a escola. No começo ficara muito contente porque achava que ia fazer amigos aos montes e teria sempre com quem se divertir. Mas com o passar do tempo viu que não foi bem assim o que aconteceu.
À medida que começou a sair mais vezes na rua acompanhada sempre dos pais percebeu que era mal vista e todos sempre a olhavam como espectros sombrios e maldosos em sinal de reprovação e rejeição.
Um belo dia perguntou ao pai o que tinha de errado com ela. Nunca fizera questionamento algum, mas agora saber o porquê de tantos olhares de desprezo era a sua maior vontade, mais do que a de fazer amigos,. Pois embora já estivesse freqüentando a escola por um tempo não tinha amigo algum. Ninguém se aproximava ou a deixava se aproximar.
-Pai, o que há de errado comigo?
-Nada, filha, por que está perguntando isso?
-Ninguém gosta de mim.
-Deixe disto, você é uma menina linda e ninguém tem porque não gostar de você. Agora vá dormir, já é tarde.
A pobrezinha já não queria mais sair de casa, então enquanto deixou de ir á escola resolveu assistir televisão, coisa que por alguma razão nunca tinha feito, pois passava a maior parte do tempo deitada na cama com fortes dores musculares. Ligou e televisão e ficou assistindo sentada no sofá.
Já era tarde da noite quando a mãe chegou do trabalho.
-Filha, o que faz aí? Você nunca foi de gostar de televisão.
-Resolvi ver se gosto. Mãe, você me ama?
-Sim, claro que sim, por que não amaria? Você é minha filhinha linda.
Sorriram-se e se abraçaram. Nesse momento o pai chega do trabalho. Com os olhos lacrimejando a menina pergunta ao pai se ele a ama.
-Claro que sim, você e sua mãe são as coisas mais preciosas pra mim.
Eis que todos se abraçam e choram de felicidade, por alguma razão aquele momento foi especial. Embora a família sempre se desse bem os três nunca brigassem, não demonstravam afeto dessa maneira havia um bom tempo.
No dia seguinte o pai acorda cedo e prepara o café antes que a esposa acorde. Ambos resolvem acordar a pequena. Ao entrarem no quarto da menina encontram uma enorme poça de sangue e um bilhete sobre a escrivaninha, pois embora muito jovem, a adorável criança já sabia escrever...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Silêncio

Esmurrou a parede até que suas mãos estivessem completamente ensangüentadas. Como já tinha se cansado de gritar e queria fazer ainda mais barulho dirigiu-se até e mesinha do computador, arrancou o monitor do suporte e o arremessou contra a parede com toda a força que ainda lhe restava.
Após tanto escândalo sentou-se na cama desarrumada ofegante e respirou fundo até conseguir ficar um pouco mais calmo, então decidiu dormir. Eis que a campainha toca:
-Senhor, esse é o seu filho?
-Sim, seu guarda – respondeu olhando assustado para a cara do pobre menino de 13 anos que mal conseguiu olhar o pai nos olhos.
-Pegamos ele com um baseado, era do bom e nós até demos uma tragadinha, mas isso não justifica o fato de que seu filho estava portando drogas. O senhor vai ter que liberar a gaita pra mim e meus comparsa aqui.
-Sim, seu guarda, entendo, está aqui, - Tirou uma nota de 100 reais do bolso e deu ao policial – espero que não aconteça de novo. Vamos, filho.
Os policiais foram embora e deixaram pai e filho a sós:
-Pai, eu não estava com..
-Eu sei filho. – Interrompe o pai bruscamente – Esses guardinhas filhas da puta só querem extorquir o que a gente dá duro pra conseguir. Mas não se aborreça mais com isso, tá?
O menino saiu calado e se assustou ao entrar no quarto e ver a parede ensangüentada e o monitor do computador destruído ao lado da cama, voltou à sala onde o pai descansava no sofá e indagou:
-O que houve, pai? Por que suas mãos estão sangrando, a parede do quarto está suja e o computador quebrado?
-Por nada, filho...
-E cadê a mãe?
-Sua mãe foi embora e seu pai está desempregado.
-E agora?!
-Se você não se importar em ter um pai corno, a gente pode ir pra outro lugar, essa porcaria de computador nunca foi útil, eu deveria ter vendido antes. E sua mãe é uma vaca, uma perfeita vadia. Cê deveria ter vergonha de ter um pai corno e uma mãe vadia.
-Não fala assim, eu gosto de você, pai.
-Fico contente por isso, mas vamos lá, pegue suas coisas e vamos embora, não agüento mais ficar nessa merda de lugar, vamos, anda logo.
O menino se retirou e ao anoitecer ouviu-se apenas o silêncio continuo de um lugar abandonado e ninguém mais morou ali. Com o tempo os cupins e a chuva consumiram o resto do barraco e nunca mais outra coisa foi construída no mesmo lugar.